8 de dezembro de 2010

Maria

Maria e a sua Frustração eram casadas há vinte anos. A Frustração passava o tempo sentada no sofá, depois do trabalho e aos fins-de-semana, à espera que Maria a chamasse para a mesa. Há vinte anos que era assim. Maria pensava, É melhor que estar sozinha. Há vinte anos o iterava, como sentida e silenciosa reza. Maria era uma mulher de índole fraca, cuja tramas dos séculos haviam tornado numa verdadeira ama da sua Frustração, a quem se dedicava sem questionar. Pouco conhecia da vida para além disso e jamais alguma vez havia nela reflectido com suficiente desapego, pois que sempre a tinham ensinado a pegar-se muito às coisas, para que não ficasse sozinha. Sempre a tinham ensinado que, sozinha, ela não tinha valor. Por vezes, Maria sentia muitas coisas estranhas, confusas e controversas em relação à sua vida e à sua pessoa, mas não as sabia compreender, muito menos gerir. Após esses curtos momentos de uma quase-consciência, não mais que sensível, acabava sempre, no momento potencialmente mais crucial, por reprimir tudo, e recidivamente tornava a si, à Maria, àquilo que haviam feito dela. A sua Frustração pouco lhe ligava, senão por interesse de algo, como a comida ou a roupa passada. Nas férias costumavam ir até à terra. A Frustração não sabia cozinhar, nem engomar, por isso se casara com Maria. Mas a Frustração sentia-se frustrada e, por proximidade, costumava descarregar sobre Maria. A verdade é que a Frustração também havia sido, desde pequena, encaminhada para se vir a frustrar, pelo que era o que era. Apesar de tudo, Maria garantia-se, Assim estou segura. E julgava de facto estar. Para além do mais, tinha os filhos, frutos de duas noites de união com a sua Frustração, aos quais ia buscar a força para recalcar, sob o peso de fantasiosas projecções acerca da unidade familiar, a grande desilusão que a sua vida era. E assim ia conseguindo a força, ao longo dos anos, para se manter junto da sua Frustração, fiel, cansada e iludida, tal qual o preceito incumbia.

Certa tarde, quando menos esperava ― preparava-se ela para começar a fazer o jantar de todas as noites ―, a sua Frustração levantou-se do sofá e foi ao pé dela dizer-lhe que se ia embora, para nunca mais voltar! Estava farta de ser frustrada! Maria não queria acreditar no que ouvia. Ficou atónita. Não queria crer que estivesse realmente livre da sua Frustração, depois de todo o esforço e empenho de uma vida. Os olhos de Maria inundaram-se de lágrimas, o rosto em choque. Não estava preparada para todo aquele alívio que lhe escorria em bica pelas faces, que ela nem podia entender como tal. Para ela, não mais que desgosto e ignomínia.

Desse ponto em diante, passou o resto da vida sozinha. Não conseguira conceber estar com mais ninguém para além de quem tinha servido. No rosto, um perene ar de tristeza, de quem nunca conseguira perceber por que tinha sido deixada, ela, a maior empreendedora da sua Frustração! Depois de uma vida inteira à sua sombra, não suportava agora a luz clara do alívio. Nunca conseguira aceitar que estava livre. Mas enfim, sempre tinha as recordações, a sua família (que só então começara a sentir pena) e os rebentos da sua Frustração.

23 de outubro de 2010

Espéculo


Vim de onde ainda não era, sem nada vestido. De um sítio desconhecido, que tão-pouco é sítio. Donde vim, nem o sítio nem eu éramos. Agora, neste sítio que é, onde me encontro, já sou, como o sítio. Daqui a algum tempo, depois de por aqui ter passado, regressarei ao não-ser. Mas ao a seguir, que será igual. Mas eu, diferente: irei vestido. Pois ainda hão-de haver pessoas que me quererão ao seu nível, ignorando o facto de que, por essa altura, tão-pouco já me aguentarei em pé.

31 de agosto de 2010

Ego sum qui sum


Tu que me vês daí, aqui sentado sobre a esbatida, húmida e dura areia, molhado, torrefeito pelo teu Sol. Contemplo-te sem perguntas porque não as há, não as pode haver: no-las deste sem a hipótese de no-las responder. Há perguntas. Mas uma pergunta só é válida quando a resposta não é de natureza írrita, impossível. 

Existes na minha cabeça porque te penso. Eu existo como se me tivesses pensado. Porém parece-me que não te sei como tu a mim. Contudo ainda, imagino que me dizes: «Tens-me frente aos olhos e insistes em não me ver.»

Entendo-te sem te compreender (se bem que às vezes te compreenda mas te não entenda). Mas eu percebo que não me possas falar. Eu percebo que não hajas o que dizer. Também eu não falo contigo mas Comigo sobre ti. 

Tu — és um mágico que me encanta, e não és senão o Encanto que desse mágico emana.

21 de agosto de 2010

(s/ título)


Caminhava pelo passeio que beirava uma estrada preta e onde, sentado no lancil, um pequeno chorava.

«Por que choras?» 
Olhou-me rosto molhado. 
«Por causa da confusão.» 
«Que confusão?» 
«Se a pudesse dizer não era confusão.» 
Continuou a verter lágrimas e eu prossegui passeio fora. 

(Há que saber abandonar).

11 de agosto de 2010

Sou de facto o Diabo


Sou o eterno Diferente, o eterno Adiado, o Supérfluo do Abismo. Fiquei fora da Criação. Sou o Deus dos mundos que foram antes do Mundo - os reis de Edom que reinaram mal antes de Israel. A minha presença neste universo é a de quem não foi convidado. Trago comigo memórias de coisas que não chegaram a ser mas que estiveram para ser.


A Hora do Diabo, F. Pessoa, Assírio & Alvim

18 de junho de 2010

Incipit Saramago




Saramago foi um homem que se conseguiu, que se ganhou. Nem a sua morte se pode considerar uma perda porque tudo o que vem dele é só ganho; com os seus eventuais defeitos e qualidades, felizmente. A sua morte só traz perda na medida em que concede uma maior consciência de que o mal da inconsciência vai perdurando. Isto sim, é de pesar. Saramago está em nós. É força ubíqua. Lê-lo, ouvi-lo, pensá-lo, fazê-lo é ganhar. Saramago é uma parte da construção de que, enquanto humanos dignos (se alguma vez o decidirmos ser), precisamos. Se agora somos nós que o somos ― a sua memória ―, então Saramago (re)começa hoje.



18 Junho 2010

3 de junho de 2010

20 de janeiro de 2010

Desiderato (ou: meu deus!)


Meu deus. Que íntimo envolvimento tenho com a figura feminina, que vontade de envolver esses seres de olhos de dádiva e formas de duna. Como me dá para as querer abraçar, fruir, penetrar. Sinto ternura a cada movimento corporal seu, a cada sensação que expressam só no corpo.

Mas como é quase estranho sentir isto por todas. Pelas que vejo que me aprazem. Ah, como as envolveria a todas se pudesse, se houvesse como o fazer senão pelo modo que me é unicamente possível — nunca as envolver, ter só a vontade íntima de. 

Não tenho medo nenhum de amar. Só que me restrinjam o amor. Sinto amor só por ver, ao olhar. Por isso amo todos os dias, como quem vivesse mil vidas em muito pouco tempo, sem que as viva de facto senão a própria e o pessoal desejo impossível de viver as mil. 

Meu deus... Conhece-se tantas vidas e vê-se tantas mais...

Marraquexe: um exemplo. Estranha me apareceste, de tão cheia que te vi. Tão cheia ou foi só a chegada? Houve uma primeira comoção à chegada que iluminou a ideia com que para sempre ficarei de ti. 

Aproximei-me demasiado dos seus olhos. Do seu ténue sorriso que hesitava perante o meu não sorrir de todo. Não desviei porém o olhar. Tinha um corpo total, ao visível, de doçura, elegância natural: parcos seios-ternura sob o vestido curto e algo transparente de um amarelo esbatido. 

A sua pele luzia uma leve substância, um óleo, um suor próprio de quem fica de pé até de madrugada, no Verão. 

Foi aí que a vi. Na madrugada. 

Foi numa viela. Ia repugnantemente acompanhada por um vilipêndio qualquer que não quero descrever senão por quidam ascoroso, um daqueles erros a que não se pode aditar mais nada. 

Mas ela, no fundo, ia sozinha. Como sempre se está, no fundo. 

Quis tocar-lhe o corpo quando a vi. Tocar-lhe, tocar-lhe com as mãos, que é substanciar o que se tocou com os olhos. 

Toquei-lhe só com os olhos. E ela deixou. Tocou-me também assim. Deixei. Vinha vindo e me olhando e tocando com o olhar. (Interesseiramente, apenas? Não sei. Não interessa). Sorria-me quase imperceptivelmente, a ver se a ajudava e lhe sorria de volta para assim completar a construção labial que me queria erigir; mas eu, nem imperceptivelmente. Ela, contudo, manteve o leve sorriso nos lábios. 

Não sorri porque receei que me agarrasse. Que me prendesse. Ou que me repelisse. Mas, primeiro, que me atasse a si ainda mais do que aquando do primeiro vislumbre que tive do seu existir. 

Receei. Sou fácil e fraco no amor porque me enamoro de tudo o que é belo, exposto. 

Podia ter-lhe tocado. Ali mesmo, provavelmente. Na viela. Era uma prostituta. O seu corpo, novo como o meu.

Quis tê-la imediatamente. Desejei-a com a maior ternura. Quis cuidar dela, dar-lhe o rosto e fazer o dela sorrir. Sorrir seguramente. Sem ter de. Pois ela saberia que lhe estaria amando a ternura da sua existência. Quis trepar-lhe as pernas lindas, tão esbeltas e esguias, desnudas como os olhos que as olhavam. Perfeitas passaram, e transportavam sentido.

«Que estás aí a fazer», perpassou-me ainda o espírito, «nessa vida?»

Gostava de ter ficado com ela. Gostaria de a ter salvo do que quer que fosse. De nada. Nada se salva. Gostaria então de lhe ter abraçado a danação. De lhe ter penetrado nos olhos escuros, castanhos, e contemplado o sexo. Em seguida, o contrário.

Queria metê-la toda dentro da minha vida, como outros cá dentro se encontram.

Ah, e como era ela também vilipêndio. Toda ela — Marraquexe. Mas é só amar-lhe a existência, é só, e a salvo disso. Mas e como se encontra já salva dum juízo denigrativo, denegrido — salva do aspecto meramente social, flagelativamente cultural com que a eivam.

Sê livre em mim, que podes!

Trabalhas na profissão que o tempo há mais tempo sustenta, vendendo-te hoje ao mundo que por ti passe. Só eu te não compro. Eu pilhei o que o dinheiro não paga: que foi o amor indiscriminado. To reservo de graça. 

Meu deus! Como eras linda e mais qualquer coisa que foi desejar-te o todo que toda a decência ignora. 

Mas, impressionante, como senti todo o Marrocos bem mais vulgívago que tu, amor ignoto. Como se vendiam bem mais que tu. Quão mais vendidos! 

Penso-te. Tenho o prazer de te pensar. E é tudo. 

Ter a liberdade de um corpo solto, à distância de um olhar fito em um mamilo que quis ser entrevisto. Ter a liberdade desse desejo e o desejo dessa liberdade que o olhar fitou. És eterna e eternamente incorruptível em mim. Sopro puro da minha imaginação. Mancha etérea na minha percepção. Mancha-me! Vulgariza-me com a tua prostração prostituta! Quero ser ao teu nível. 

A minha vontade era ser amado pelos teus braços e sexo e rosto. 

Ah! passar-te os dedos por onde imagino passá-los... quereres-me como te quero, que seria deixares-me que te tivesse, não com propriedade, que isso paga-se, mas com enovelamento outrossim anímico, gratuito, somente à mercê da enoveladeira do amar natural. 

Beijar-te-ia. Ter-te-ia beijado se as coisas se tivessem eventualmente proporcionado como aqui as exauro. 

Mas podia ter-te sorrido. Podia ter sido mais fiel ao que agora escrevo. Um sorriso ténue, como o que me deste. Também, talvez o não tenha feito por a troca ocular me ter surpreendido ao ter sido mantida, sorridente, por ti, ao passares por mim, muito perto, lenta como a manhã. Era cedo. Pele de bronze pálido luzindo. O teu mamilo espiava-me por trás do leve tecido translúcido que o cobria e tu sabia-lo. 

Confesso que o que te amei mais foi todo o teu ser dadivoso. Oferecias-te-me. Não sei se com desejo, se com vontade, se por qualquer necessidade. Mas tal movimento labial que delineia um sorriso como o que vi, não pode ter declinado apenas de um mero e exclusivo interesse pecuniário. Nem me interessa a mim pensá-lo assim. Fazes agora parte do meu imaginário: realidade expandida. És o que eu fizer de ti. Não sou mau como o Homem que te faz só prostituta e te não sabe reinventar. Tem medo de ti, porque lhe mostras quem é, quem ele julga não ser. Eu, amar-te-ia. Existentemente com os olhos e mãos e sexo e corpo aos teus olhos e mãos e sexo e corpo. A minha mente amaria a tua. Tal como te amo agora, só por existires, te ter visto. Existentemente, que é o suficiente para te amar. Mas, ah… se tivesses sido mais tangível, substancialmente mais tangível... 

Quem me dera ter-te sorrido. Que pusilânime vontade, que teve medo de se patentear como a tua. Mesmo assim, mantiveste o teu sorriso, embora hesitante porque hesitei mas, como eu a ti, não deixaste de me olhar. Lembro-me: não desviei os olhos dos teus, ao passares por mim, perto, leve. Foi por não haver um interesse egoístico da minha parte, sabendo eu o que eras, que não sorri. Quis mostrar-te que te amei a existência, com o não te ter sorrido... Pareceu-me inadequado, na altura. Mas era só um sorriso. Havias de ter percebido. Talvez sejas simplesmente mais corajosa, e eu não esteja habituado a tal generosidade. Talvez por isso te não tenha conseguido acompanhar aí. Talvez só por isso. (E o quidam, que ao teu lado seguia a palrar, alienado e inane…) Mas admiro-te a coragem de te teres cravado assim na minha mente. Foi honesto. Não és nenhuma máquina: tens sentimentos; choras. Quem sabe o não estás fazendo agora — fios de prata sobre o teu ouro facial. Lamber-tos-ia até à fonte, lá depositando depois um ósculo, para que passasses a lacrimejar para dentro de mim, já outras lágrimas que não as de antes. E um novo movimento procederia do cerne da tua essência que, talvez murcha ou quase, rápido floresceria, por teres compreendido que eu percebera. Dar-me-ias então sorriso maior porque eu também. 

E, na fúria dos corpos desnudados. Sem princípios nem pudor. Sem nada, que é estar só nu. Sem interior complicado. Sendo o total amplexo do cosmos na unidade de dois corpos sobrepostos. Sendo: sendo: sendo. Etérea fúria de unidade cósmica. Qual mão gigante que côncava nos unisse. Livres! Livres de vós todos e de vossa Mãe, a Convenção! 

Meu deus!... Como jogo com a tua prostituição, a conduzo em meu e em teu favor. Como seguimos perfeitos no guiar lindo de uma estrada possivelmente impossível. Como nos guia a meretrícia, que libertinamente nos deixa ser como gostaríamos, como eu gostaria, pois tu és eu, recriada por mim em mim. Vens de fora: mas só poderei conceber-te como me é possível, como és dentro de mim, como te recreei, e nunca segundo a realidade limitada a que te reduziram o ser e a existência. Existes, existes realmente, mas és na realidade mais imprecisa do que no imaginário em que te refiz — onde dei asas ao sorriso que me deste. 

Sou criança ao recriar-te em devaneio enlevado. Sei poder percorrer todas as passagens que me dás a abrir. Afinal, és uma prostituta. 



Agosto de 2005, 
no autocarro que ia 
de Marraquexe a Essaouira.