20 de janeiro de 2010

Desiderato (ou: meu deus!)


Meu deus. Que íntimo envolvimento tenho com a figura feminina, que vontade de envolver esses seres de olhos de dádiva e formas de duna. Como me dá para as querer abraçar, fruir, penetrar. Sinto ternura a cada movimento corporal seu, a cada sensação que expressam só no corpo.

Mas como é quase estranho sentir isto por todas. Pelas que vejo que me aprazem. Ah, como as envolveria a todas se pudesse, se houvesse como o fazer senão pelo modo que me é unicamente possível — nunca as envolver, ter só a vontade íntima de. 

Não tenho medo nenhum de amar. Só que me restrinjam o amor. Sinto amor só por ver, ao olhar. Por isso amo todos os dias, como quem vivesse mil vidas em muito pouco tempo, sem que as viva de facto senão a própria e o pessoal desejo impossível de viver as mil. 

Meu deus... Conhece-se tantas vidas e vê-se tantas mais...

Marraquexe: um exemplo. Estranha me apareceste, de tão cheia que te vi. Tão cheia ou foi só a chegada? Houve uma primeira comoção à chegada que iluminou a ideia com que para sempre ficarei de ti. 

Aproximei-me demasiado dos seus olhos. Do seu ténue sorriso que hesitava perante o meu não sorrir de todo. Não desviei porém o olhar. Tinha um corpo total, ao visível, de doçura, elegância natural: parcos seios-ternura sob o vestido curto e algo transparente de um amarelo esbatido. 

A sua pele luzia uma leve substância, um óleo, um suor próprio de quem fica de pé até de madrugada, no Verão. 

Foi aí que a vi. Na madrugada. 

Foi numa viela. Ia repugnantemente acompanhada por um vilipêndio qualquer que não quero descrever senão por quidam ascoroso, um daqueles erros a que não se pode aditar mais nada. 

Mas ela, no fundo, ia sozinha. Como sempre se está, no fundo. 

Quis tocar-lhe o corpo quando a vi. Tocar-lhe, tocar-lhe com as mãos, que é substanciar o que se tocou com os olhos. 

Toquei-lhe só com os olhos. E ela deixou. Tocou-me também assim. Deixei. Vinha vindo e me olhando e tocando com o olhar. (Interesseiramente, apenas? Não sei. Não interessa). Sorria-me quase imperceptivelmente, a ver se a ajudava e lhe sorria de volta para assim completar a construção labial que me queria erigir; mas eu, nem imperceptivelmente. Ela, contudo, manteve o leve sorriso nos lábios. 

Não sorri porque receei que me agarrasse. Que me prendesse. Ou que me repelisse. Mas, primeiro, que me atasse a si ainda mais do que aquando do primeiro vislumbre que tive do seu existir. 

Receei. Sou fácil e fraco no amor porque me enamoro de tudo o que é belo, exposto. 

Podia ter-lhe tocado. Ali mesmo, provavelmente. Na viela. Era uma prostituta. O seu corpo, novo como o meu.

Quis tê-la imediatamente. Desejei-a com a maior ternura. Quis cuidar dela, dar-lhe o rosto e fazer o dela sorrir. Sorrir seguramente. Sem ter de. Pois ela saberia que lhe estaria amando a ternura da sua existência. Quis trepar-lhe as pernas lindas, tão esbeltas e esguias, desnudas como os olhos que as olhavam. Perfeitas passaram, e transportavam sentido.

«Que estás aí a fazer», perpassou-me ainda o espírito, «nessa vida?»

Gostava de ter ficado com ela. Gostaria de a ter salvo do que quer que fosse. De nada. Nada se salva. Gostaria então de lhe ter abraçado a danação. De lhe ter penetrado nos olhos escuros, castanhos, e contemplado o sexo. Em seguida, o contrário.

Queria metê-la toda dentro da minha vida, como outros cá dentro se encontram.

Ah, e como era ela também vilipêndio. Toda ela — Marraquexe. Mas é só amar-lhe a existência, é só, e a salvo disso. Mas e como se encontra já salva dum juízo denigrativo, denegrido — salva do aspecto meramente social, flagelativamente cultural com que a eivam.

Sê livre em mim, que podes!

Trabalhas na profissão que o tempo há mais tempo sustenta, vendendo-te hoje ao mundo que por ti passe. Só eu te não compro. Eu pilhei o que o dinheiro não paga: que foi o amor indiscriminado. To reservo de graça. 

Meu deus! Como eras linda e mais qualquer coisa que foi desejar-te o todo que toda a decência ignora. 

Mas, impressionante, como senti todo o Marrocos bem mais vulgívago que tu, amor ignoto. Como se vendiam bem mais que tu. Quão mais vendidos! 

Penso-te. Tenho o prazer de te pensar. E é tudo. 

Ter a liberdade de um corpo solto, à distância de um olhar fito em um mamilo que quis ser entrevisto. Ter a liberdade desse desejo e o desejo dessa liberdade que o olhar fitou. És eterna e eternamente incorruptível em mim. Sopro puro da minha imaginação. Mancha etérea na minha percepção. Mancha-me! Vulgariza-me com a tua prostração prostituta! Quero ser ao teu nível. 

A minha vontade era ser amado pelos teus braços e sexo e rosto. 

Ah! passar-te os dedos por onde imagino passá-los... quereres-me como te quero, que seria deixares-me que te tivesse, não com propriedade, que isso paga-se, mas com enovelamento outrossim anímico, gratuito, somente à mercê da enoveladeira do amar natural. 

Beijar-te-ia. Ter-te-ia beijado se as coisas se tivessem eventualmente proporcionado como aqui as exauro. 

Mas podia ter-te sorrido. Podia ter sido mais fiel ao que agora escrevo. Um sorriso ténue, como o que me deste. Também, talvez o não tenha feito por a troca ocular me ter surpreendido ao ter sido mantida, sorridente, por ti, ao passares por mim, muito perto, lenta como a manhã. Era cedo. Pele de bronze pálido luzindo. O teu mamilo espiava-me por trás do leve tecido translúcido que o cobria e tu sabia-lo. 

Confesso que o que te amei mais foi todo o teu ser dadivoso. Oferecias-te-me. Não sei se com desejo, se com vontade, se por qualquer necessidade. Mas tal movimento labial que delineia um sorriso como o que vi, não pode ter declinado apenas de um mero e exclusivo interesse pecuniário. Nem me interessa a mim pensá-lo assim. Fazes agora parte do meu imaginário: realidade expandida. És o que eu fizer de ti. Não sou mau como o Homem que te faz só prostituta e te não sabe reinventar. Tem medo de ti, porque lhe mostras quem é, quem ele julga não ser. Eu, amar-te-ia. Existentemente com os olhos e mãos e sexo e corpo aos teus olhos e mãos e sexo e corpo. A minha mente amaria a tua. Tal como te amo agora, só por existires, te ter visto. Existentemente, que é o suficiente para te amar. Mas, ah… se tivesses sido mais tangível, substancialmente mais tangível... 

Quem me dera ter-te sorrido. Que pusilânime vontade, que teve medo de se patentear como a tua. Mesmo assim, mantiveste o teu sorriso, embora hesitante porque hesitei mas, como eu a ti, não deixaste de me olhar. Lembro-me: não desviei os olhos dos teus, ao passares por mim, perto, leve. Foi por não haver um interesse egoístico da minha parte, sabendo eu o que eras, que não sorri. Quis mostrar-te que te amei a existência, com o não te ter sorrido... Pareceu-me inadequado, na altura. Mas era só um sorriso. Havias de ter percebido. Talvez sejas simplesmente mais corajosa, e eu não esteja habituado a tal generosidade. Talvez por isso te não tenha conseguido acompanhar aí. Talvez só por isso. (E o quidam, que ao teu lado seguia a palrar, alienado e inane…) Mas admiro-te a coragem de te teres cravado assim na minha mente. Foi honesto. Não és nenhuma máquina: tens sentimentos; choras. Quem sabe o não estás fazendo agora — fios de prata sobre o teu ouro facial. Lamber-tos-ia até à fonte, lá depositando depois um ósculo, para que passasses a lacrimejar para dentro de mim, já outras lágrimas que não as de antes. E um novo movimento procederia do cerne da tua essência que, talvez murcha ou quase, rápido floresceria, por teres compreendido que eu percebera. Dar-me-ias então sorriso maior porque eu também. 

E, na fúria dos corpos desnudados. Sem princípios nem pudor. Sem nada, que é estar só nu. Sem interior complicado. Sendo o total amplexo do cosmos na unidade de dois corpos sobrepostos. Sendo: sendo: sendo. Etérea fúria de unidade cósmica. Qual mão gigante que côncava nos unisse. Livres! Livres de vós todos e de vossa Mãe, a Convenção! 

Meu deus!... Como jogo com a tua prostituição, a conduzo em meu e em teu favor. Como seguimos perfeitos no guiar lindo de uma estrada possivelmente impossível. Como nos guia a meretrícia, que libertinamente nos deixa ser como gostaríamos, como eu gostaria, pois tu és eu, recriada por mim em mim. Vens de fora: mas só poderei conceber-te como me é possível, como és dentro de mim, como te recreei, e nunca segundo a realidade limitada a que te reduziram o ser e a existência. Existes, existes realmente, mas és na realidade mais imprecisa do que no imaginário em que te refiz — onde dei asas ao sorriso que me deste. 

Sou criança ao recriar-te em devaneio enlevado. Sei poder percorrer todas as passagens que me dás a abrir. Afinal, és uma prostituta. 



Agosto de 2005, 
no autocarro que ia 
de Marraquexe a Essaouira.

2 comentários:

Vanderson da Silva Pino disse...

Cara que texto bacana! gostei muito! Gosto de escrever também mas vendo os seus textos, senti-me um mero amador! abaraços do Brasil!

Iacobus disse...

Obrigado pelo elogio :)
Abraços