NENÚFAR: Se digo que gosto dos pássaros, é porque os pássaros são livres.
FOGO: Livres? O que fazes, é apenas projectar a liberdade nos pássaros, pois, na realidade, não são mais livres do que tu ou do que eu. Só porque os pássaros te inspiram liberdade, isso não faz deles livres. A noção de liberdade que lhes atribuis, não se deve senão ao facto de estares sujeito à condição que é a tua.
NENÚFAR: E que condição é essa que é a minha?
FOGO: Boiares, de face voltada para o céu e raízes presas ao fundo. A ideia daquilo que está longe e daquilo que se movimenta tornou-se, por isso mesmo, desejo em ti.
NENÚFAR: Mas até a ti, que tens a possibilidade de te movimentares, não te é indiferente o céu distante, ou é?
FOGO: Porque sei e aceito que o céu está longe e que não o posso ter, aprendi a dar-lhe o devido uso: quanto mais alto se encontra, mais alto as minhas chamas alcançam! Por que não haverá de ser essa, aliás, a sua verdadeira função, conceder-nos espaço para o que temos de mais expansível, em vez de o reduzirmos a uma miragem inalcansável, de que só os pássaros e os cometas podem desfrutar?
NENÚFAR: Mas não é natural que contemple e anseie e me desanime por tudo ser inalcansável? Contemplar é o que eu sou, dada a minha condição. É a minha natureza. Não fui feito para alcançar, mas para mirar daqui do meu canto, parado, entre estas águas e o Universo distante. Até porque, para mim, não é só o céu que está longe mas todas as coisas, com a excepção destas águas, do lodo no fundo e da brisa que, ainda assim, passa sem nunca se demorar.
FOGO: É isso o que és ou o que simplesmente fazes?... Todos estamos confinados a uma condição que, a menos que deixemos, não nos há-de condicionar totalmente. Também a mim me é natural contemplar. E acredita que não ignoro que, se como tu também eu contemplasse sempre no mesmo sítio, algo seria obviamente diferente. No entanto, no que toca a condição, tudo vai dar ao mesmo: não existe animal ou vegetal que dela não dependa. Mas a busca pelas qualidades que, mesmo apesar disso, cada um potencialmente possui, pode fazer alguma diferença, se propriamente encontradas e usadas. É isso que me alimenta as chamas e as lança, numa volitiva dança, em direcção ao zénite. Contudo, não é o zénite que me interessa, mas o potencial espacial que ele me disponibiliza. Se a tua natureza fosse puramente contemplativa, natural seria que te não pusesses a sonhar com aquilo que não és e com aquilo que não tens. Se contemplar fosse aquilo que és em essência, aceitava-lo simplesmente, confortável aí no teu canto, parado, entre essas águas e o Universo distante. Mas o que acontece é que desejas. Queres voar, ser o pássaro. E desejar é, já por si, contrário ao que dizes ser-te natural. Portanto, talvez não te seja assim tão natural. Pelo menos é o que avalio, daqui desta margem, donde já outras vezes conversei contigo. E o que mais temo, Nenúfar, é que tenhas desistido de ser o pássaro que mora em ti, o pássaro da tua imaginação, cujo correspondente real, que vês passar lá no alto, é comparativamente muito menos livre. Não obstante, desejas ser como ele... E à força de tanto o desejares, de tanto desejares o pássaro errado só por ele te parecer livre no seu voo, é bem provável que te tenhas inconscientemente acomodado à dor de não o seres, que é a mesma coisa que desistir, em vez de te esforçares por dar uso à tua plasticidade, por meio do único instrumento possível de libertação ― a imaginação consciente de si. Eis a nossa verdadeira natureza, eis onde tudo reside ― na plasticidade da nossa imaginação!
NENÚFAR: Não sei como dizer que não a isso, mas também não o saberia pôr em prática. Se me lançares do teu fogo, talvez também eu possa arder mais alto!...
FOGO: É precisamente isso que tenho vindo a fazer, sem sequer precisar de recorrer às minhas chamas... Não é chamuscado que te quero, ó verde e florígero Nenúfar!
NENÚFAR: Mas eu, caro Fogo, estou preso ao lodo, mesmo no pego deste pequeno lago! Como queres que não pense que me gozas, por mais sentido que discirna nas tuas metáforas? Que mais poderia eu ser do que isto que sou? Já tu, tu não dependes de quaisquer raízes! Não estás atado ao chão!
FOGO: Não da mesma maneira que tu, é certo, mas também eu dependo do solo para apoiar e alimentar as minhas chamas. Tal como o lodo está para a tua bela flor, está o casculho para as minhas chamas! Somos diferentes mas, se formos a ver, o princípio que nos faz ser o que somos, é semelhante. Só que eu trabalho para que as minha chamas não sejam como as chamas dos demais Fogos que há por aí e que não tardam a extinguir-se, seja por arderem demais, seja por nunca o terem aprendido.
NENÚFAR: Compreendo, mas insisto, se não ardo, como poderia arder? Também tu, porque ardes, te manténs à margem das minhas águas...
FOGO: Teimas nesses paralelismos realistas por parolice! Preferes as armadilhas da retórica à verdade da florescência, tu que floresces?!... Só o misto de frustração e descrença nascido da cedência a essa falácia, que há anos alimentas com base apenas na crença de tudo te parecer insuperável, te faz desacreditar no teu próprio potencial. Já para não falar que nenhum dos teus semelhantes aí em teu redor, conformemente afeitos a uma indolência inveterada, alguma vez te convenceu ou sequer tentou convencer do contrário, reduzidos eles próprios a não mais do que boiar, tal como bem testemunho daqui. Mas não verás tu que, apesar de tudo, apesar do lodo, geras tão magnífica e radiante flor-de-lótus?! Tu és ela ― e ela é a tua verdade.
O Fogo despediu-se por fim do Nenúfar e seguiu caminho, deixando-o profundamente absorvido. Sozinho, de olhar fixo na sua flor-de-lótus, que até então sempre vira suspensa acima de si, parecia-lhe agora como se flutuasse no próprio azul do céu, e com uma distinção que nunca antes lhe reconhecera, pois que, de repente, as suas pétalas começarem numa dança maviosamente ondulante e reluzente, como se a flor se tivesse transformado num pequeno sol, cuja luz, contra todas as probabilidades ― ou pelo menos como jamais o Nenúfar poderia ter achado possível ―, de facto o começava a alumiar e a enobrecer.
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