25 de maio de 2015

O FOGO E O NENÚFAR


NENÚFAR: Se digo que gosto dos pássaros, é porque os pássaros são livres.

FOGO: Livres? O que fazes, é apenas projectar a liberdade nos pássaros, pois, na realidade, não são mais livres do que tu ou do que eu. Só porque os pássaros te inspiram liberdade, isso não faz deles livres. A noção de liberdade que lhes atribuis, não se deve senão ao facto de estares sujeito à condição que é a tua.

NENÚFAR: E que condição é essa que é a minha?

FOGO: Boiares, de face voltada para o céu e raízes presas ao fundo. A ideia daquilo que está longe e daquilo que se movimenta tornou-se, por isso mesmo, desejo em ti.

NENÚFAR: Mas até a ti, que tens a possibilidade de te movimentares, não te é indiferente o céu distante, ou é?

FOGO: Porque sei e aceito que o céu está longe e que não o posso ter, aprendi a dar-lhe o devido uso: quanto mais alto se encontra, mais alto as minhas chamas alcançam! Por que não haverá de ser essa, aliás, a sua verdadeira função, conceder-nos espaço para o que temos de mais expansível, em vez de o reduzirmos a uma miragem inalcansável, de que só os pássaros e os cometas podem desfrutar?

NENÚFAR: Mas não é natural que contemple e anseie e me desanime por tudo ser inalcansável? Contemplar é o que eu sou, dada a minha condição. É a minha natureza. Não fui feito para alcançar, mas para mirar daqui do meu canto, parado, entre estas águas e o Universo distante. Até porque, para mim, não é só o céu que está longe mas todas as coisas, com a excepção destas águas, do lodo no fundo e da brisa que, ainda assim, passa sem nunca se demorar.

FOGO: É isso o que és ou o que simplesmente fazes?... Todos estamos confinados a uma condição que, a menos que deixemos, não nos há-de condicionar totalmente. Também a mim me é natural contemplar. E acredita que não ignoro que, se como tu também eu contemplasse sempre no mesmo sítio, algo seria obviamente diferente. No entanto, no que toca a condição, tudo vai dar ao mesmo: não existe animal ou vegetal que dela não dependa. Mas a busca pelas qualidades que, mesmo apesar disso, cada um potencialmente possui, pode fazer alguma diferença, se propriamente encontradas e usadas. É isso que me alimenta as chamas e as lança, numa volitiva dança, em direcção ao zénite. Contudo, não é o zénite que me interessa, mas o potencial espacial que ele me disponibiliza. Se a tua natureza fosse puramente contemplativa, natural seria que te não pusesses a sonhar com aquilo que não és e com aquilo que não tens. Se contemplar fosse aquilo que és em essência, aceitava-lo simplesmente, confortável aí no teu canto, parado, entre essas águas e o Universo distante. Mas o que acontece é que desejas. Queres voar, ser o pássaro. E desejar é, já por si, contrário ao que dizes ser-te natural. Portanto, talvez não te seja assim tão natural. Pelo menos é o que avalio, daqui desta margem, donde já outras vezes conversei contigo. E o que mais temo, Nenúfar, é que tenhas desistido de ser o pássaro que mora em ti, o pássaro da tua imaginação, cujo correspondente real, que vês passar lá no alto, é comparativamente muito menos livre. Não obstante, desejas ser como ele... E à força de tanto o desejares, de tanto desejares o pássaro errado só por ele te parecer livre no seu voo, é bem provável que te tenhas inconscientemente acomodado à dor de não o seres, que é a mesma coisa que desistir, em vez de te esforçares por dar uso à tua plasticidade, por meio do único instrumento possível de libertação ― a imaginação consciente de si. Eis a nossa verdadeira natureza, eis onde tudo reside ― na plasticidade da nossa imaginação!

NENÚFAR: Não sei como dizer que não a isso, mas também não o saberia pôr em prática. Se me lançares do teu fogo, talvez também eu possa arder mais alto!...

FOGO: É precisamente isso que tenho vindo a fazer, sem sequer precisar de recorrer às minhas chamas... Não é chamuscado que te quero, ó verde e florígero Nenúfar!

NENÚFAR: Mas eu, caro Fogo, estou preso ao lodo, mesmo no pego deste pequeno lago! Como queres que não pense que me gozas, por mais sentido que discirna nas tuas metáforas? Que mais poderia eu ser do que isto que sou? Já tu, tu não dependes de quaisquer raízes! Não estás atado ao chão!

FOGO: Não da mesma maneira que tu, é certo, mas também eu dependo do solo para apoiar e alimentar as minhas chamas. Tal como o lodo está para a tua bela flor, está o casculho para as minhas chamas! Somos diferentes mas, se formos a ver, o princípio que nos faz ser o que somos, é semelhante. Só que eu trabalho para que as minha chamas não sejam como as chamas dos demais Fogos que há por aí e que não tardam a extinguir-se, seja por arderem demais, seja por nunca o terem aprendido.

NENÚFAR: Compreendo, mas insisto, se não ardo, como poderia arder? Também tu, porque ardes, te manténs à margem das minhas águas...

FOGO: Teimas nesses paralelismos realistas por parolice! Preferes as armadilhas da retórica à verdade da florescência, tu que floresces?!... Só o misto de frustração e descrença nascido da cedência a essa falácia, que há anos alimentas com base apenas na crença de tudo te parecer insuperável, te faz desacreditar no teu próprio potencial. Já para não falar que nenhum dos teus semelhantes aí em teu redor, conformemente afeitos a uma indolência inveterada, alguma vez te convenceu ou sequer tentou convencer do contrário, reduzidos eles próprios a não mais do que boiar, tal como bem testemunho daqui. Mas não verás tu que, apesar de tudo, apesar do lodo, geras tão magnífica e radiante flor-de-lótus?! Tu és ela ― e ela é a tua verdade.

O Fogo despediu-se por fim do Nenúfar e seguiu caminho, deixando-o profundamente absorvido. Sozinho, de olhar fixo na sua flor-de-lótus, que até então sempre vira suspensa acima de si, parecia-lhe agora como se flutuasse no próprio azul do céu, e com uma distinção que nunca antes lhe reconhecera, pois que, de repente, as suas pétalas começarem numa dança maviosamente ondulante e reluzente, como se a flor se tivesse transformado num pequeno sol, cuja luz, contra todas as probabilidades ― ou pelo menos como jamais o Nenúfar poderia ter achado possível ―, de facto o começava a alumiar e a enobrecer.

THE FIRE AND THE NENUPHAR


NENUPHAR: If I say that I appreciate birds, it's because birds are free.

FIRE: Free? You're but projecting freedom on birds, because, as a matter of fact, they aren't more free than you and me. Just because birds inspire you with freedom, doesn’t make them free. The notion of freedom that you attribute to them stems merely from the fact that you are subject to this condition of yours.

NENUPHAR: And what is this condition of mine?

FIRE: To float, with face towards the sky and roots attached to bottom. Therefore, the idea of distance and movement has become a desire in you.

NENUPHAR: But you yourself are not indifferent to the distant sky, are you, even though you are able to move around?

FIRE: Since I know and accept the sky is distant and I can’t have him, I have learned to bestow on him his proper use: the higher he is, the higher my flames reach! Actually, why shouldn’t we assume that his true function is granting us the space to what we hold more expansible, instead of reducing him to an unreachable mirage which only birds and comets can take pleasure from?

NENUPHAR: But isn’t it natural that I contemplate and long and despair because everything is unreachable? To contemplate is what I am, given my condition. It is my nature. I was not meant to reach, but to gaze from this nook here, motionless, between this water and the distant Universe. Besides, for me, it is not only the sky that is far but all things together, except this water, the mud at the bottom and the breeze that, nevertheless, comes only to pass.

FIRE: Is that what you are or simply what you do?... We are all confined to a condition that, unless we let it, won't utterly condition us. Contemplating is also natural to me. And believe me, I do not ignore that, if I would always contemplate from the very same spot like you do, something would obviously be different. Still, as for condition itself, everything comes to the same: there's no animal or plant that doesn't depend on it. But the search for each one's qualities, which, even despite everything, we potentially own, can make some difference, if properly found and used. This is what nourishes my flames and triggers them in a volitional dance towards the zenith. However, it is not the zenith I'm aiming for, but the spatial potential that it offers to me. If your nature was purely contemplative, it would be natural that you wouldn't drown yourself in dreams about what you are not and about what you have not. If contemplating were what you are in essence, you would simply accept it, there, comfortable in your nook, motionless, between the water and the distant Universe. But the thing is that you do happen to desire. You want to fly, to be the bird. And to desire is, in itself, opposite to that which you claim as naturally belonging to you. So maybe it isn't much like that. This is, at least, how I appraise it, here from this bank, from where, as some other times, I have already spoken to you. But what I fear the most, Nenuphar, is that you've given up being the bird dwelling within yourself, the bird of your imagination, whose real correspondent, that you see passing by up there in the sky, is comparatively much less free. Nevertheless, you wish to be like him... And by force of desiring it so, of desiring the wrong bird that much, just because he seems free in his flight, it's quite probable that you have unconsciously accustomed yourself to the pain of not being it, which is the same as giving up, instead of making use of your plasticity, by means of the only possible instrument of liberation—the self-aware imagination. Here's our true nature, here's where everything lies—in our imagination's plasticity!

NENUPHAR: I do not know how to deny that, but I also wouldn’t know how to put it into practice. Perhaps if you cast me some of your flames, I could burn higher myself!...

FIRE: That's just what I have been doing, without even having to turn to my flames… I'm not willing you scorched, O green and floriferous Nenuphar!

NENUPHAR: But I, dear Fire, I'm stuck to the mud here, right on the bottom of this pond! How can you not expect me to think that you're mocking me, despite how much sense I discern in your metaphors? What else could I be than this that I am? Now, you, you do not depend on any roots! You’re not tied to the ground!

FIRE: Not in the same way as you are, that's for sure, but I am also dependent on the soil to rest and to nourish my flames. Just like the mud is to your beautiful flower, the husk is to my flames! We are different but, if we look closer, the principle that makes us who we are is similar. The difference is that I do endeavour so that my flames won't be like the flames of some other Fires out there, who won't take long until they vanish, either from burning too much or having never learnt how to.

NENUPHAR: I understand, but I insist, if I do not burn, how could I burn? You too, because you do burn, won't step beyond the bank of my water...

FIRE: You insist on those realistic parallelisms out of boorishness! Do you prefer the traps of rhetoric to the truth of blossoming, you that blossom?!... It's but the mix of frustration and disbelieve alone, born out of giving up to that fallacy you’ve been feeding on for years already, based solely on the belief of how insurmountable everything appears to you, that makes you disbelieve your own potential. Let alone the fact that none of your fellow companions right there around you, accordingly stuck to an inveterate indolence, have ever convinced you or even tried to convince you of the contrary, being themselves reduced to nothing but floating, just as I can perfectly witness from here. Won’t you see that, in spite of everything, in spite of the mud, you generate such a magnificent, such a radiant lotus flower?! You are her―and she is your truth.

The Fire finally bade the Nenuphar farewell and went away, leaving him deep in thoughts. While staring alone at the lotus flower, which, until then, he had only seen suspended above him, it seemed to him now like it was floating in the very blue of the sky, and in a way so distinctive as never before he had recognized it, since, suddenly, its petals started a dance in which they gently waved and shined, as if the flower had transformed into a little sun, whose light, against all odds―or at least as the Nenuphar could never have guessed possible―, actually started illuminating and ennobling him.

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Original text by Tiago Rosa
Translated to English by Tiago Rosa
Proofread by Stephanie Fink