Os ferries sulcavam as águas nocturnas e levantavam sonhos ondulantes que sob aquelas avançavam até virem realizar-se contra o estreito cais donde eu observava tudo. A noite, a água, o extenso porto iluminado na outra margem. Os primeiros, já a embarcação seguia a montante, realizaram-se com tal força e energia, que eu sorri de medo e surpresa. Eu estava ali, só, sobre aquele passadiço pouco largo, escuro, resguardado pelo enorme edifício atrás, sobranceiro às águas negras do rio, confortavelmente envolto na sombra da noite, aquém das luzes do porto de Hamburgo quando, de repente, o calmo flume se encapelou. Parecia impossível, a transformação; surpreendente como, sem eu dar por isso, o rio se transformara, se avolumara de pequenos monstros oníricos que rolaram até ao pé de mim. O Elbe estava cheio de sonhos que se erguiam a cada ferry que passava; cheio de sonhos como eu mas, contrariamente a ele, que os realizava com força contra a margem, eu só podia sonhá-los. Fantasma de todos os sonhos por realizar, pairava só ao longo do Elbe, a ver sonhos a realizarem-se. Os meus, por realizar, não perdiam a sua beleza por isso. Talvez mesmo aí residisse o maior do seu atributo. Também não era altura de eu realizar nada. Era altura de contemplar. As ondas escuras realizavam-se quais sonhos em espuma branca, ao embaterem contra a dura e baixa parede do cais, que o impacto atirava um pouco acima. Era como se esses pequenos monstros negros que lestos rolavam sob a superfície da água, como se debaixo de um manto negro avançassem imprudentemente camuflados, me quisessem mostrar como se acorda, como acordavam do seu sonho hermeticamente roliço para um florescimento esparso, branco, que reclamava o seu espaço no ar, na vida, na realidade. E eu era já todo vontade de os imitar. O espírito irracional do orbe é o seu impulso e força naturais. Eis porque o orbe se realiza sem hesitar; eis porque não há por que hesitasse. Mas tudo se acaba realizando, de alguma forma. Mesmo o que está parado. Estar parado é aliás o princípio de toda a realização, como vimos no caso do rio, que passou de um estado a outro. E é também realização em si. Se por hipótese se ficasse parado uma vida inteira, não seria fazer mais do que a vontade exige, e no final realizar-se-ia sempre em morte. Nada se perde no fim. Estar parado, ou pairar como o faz o contemplador, nada tem de absurdo. Ou as águas do Elbe só fariam sentido quando um ferry as sulcasse ou uma corrente as motivasse. Não. Não são precisos os ferries, não é preciso nada. Basta imaginar-lhe a profundidade, negra, impenetrável. Basta imaginá-la para saber que é exactamente do fundo, estanque, cerrado, sufocante, que tudo sai e que, de uma forma ou doutra, mais tarde ou mais cedo tudo há-de sair para vir respirar, explodir. A própria vida não faz senão sonhar a morte, realização última do processo onírico, derradeiro despertar do eterno, eterno fluxo do devir. No entanto, nada disto importa ao Elbe, que no entanto se move e se cumpre. A sua beleza reside na sua indiferença. Que tão-pouco indiferença é. Pois tudo o que o Elbe é, tudo o que naquela noite fora, não foi, nem é, mais do que eu a sê-lo.